terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

Giada e Del Piero - um golo numa baliza às escuras

O som frio do Hospital à noite. Ouvem-se passos de pantufas do lado de fora do quarto, conversas em surdina de enfermeiras, vêem-se estrelas e luzes da cidade, ouvem-se carros, poucos. Há uma máquina que faz bip bip e o ressonar para dentro de uma menina deitada na cama. A mãe dorme numa cadeira ao lado. As flores respiram devagarinho, em respeito. Uma colcha e restos de bolos dentro de uma caixa. Tudo é quase morte. 
Antes de Giada chegar a esta noite, outras noites e dias passaram-se. Mas no que importa a esta história, teremos de recuar duas semanas. 
Apesar de viver em San Giovanni di Fiore, no Sul de Itália, e Del Piero jogar nesse dia em Turim, a muitos, demasiados, quilómetros um do outro, Giada deixara fecharem-se-lhe os olhos e a alma num sonho quase real, enquanto esperava, em frente à televisão, pelo jogo da sua Vecchia Signora: percorrera a pé, depois em cima de um piano e, no fim, conduzindo uma árvore a distância que a separava da porta do prédio à entrada do estádio da Juventus. Fizera o trajecto com amigos, memórias de jogos e jogadores, cachecóis e a euforia própria de quem vai ter com a sua tribo. A meio do caminho, sentiu-se mal, uma pontada no coração que calou para dentro - havia jogo, nenhuma morte nem doença eram admissíveis. Del Piero esperava-a no relvado.
Perto do estádio, Giada lembrou-se da dor que sentira, balbuciou a um amigo uma relativa indisposição e esqueceu-se de tudo quando começou a ouvir as batucadas que vinham de dentro do recinto. Cânticos ecoavam para fora e chegavam à cidade, pelas bordas do estádio, como lava que subia, torneava uma a uma as bancadas, curvava no topo do estádio e depois descia lentamente até aos ouvidos de Giada. Não mais se lembrou da dor, tinha o corpo invadido pela emoção quente da infância.
O Pai acordou-a: "vai começar". Ela foi ao quarto, beijou o poster de Alessandro que tinha perto da cama, fez duas rezas em honra de não se sabe bem quem, tocou três vezes com a mão direita no símbolo da Juventus, depois três com a esquerda, depois uma com a direita, outra com a esquerda e quando já não sabia quantas vezes tinha tocado inventou para si própria de que estava tudo equilibrado. Voltou a tocar no símbolo, agora com as duas mãos ao mesmo tempo, e pensou para si: "vamos ganhar". 
Na sala, o jogo já começara. O Pai recebeu-a com um sorriso, abriu-lhe lugar no sofá, beijou-a e passou-lhe um cachecol por cima dos ombros. Numa mesa em frente, bruschettas e schiacciatas, foccaccetas, pão cortado aos pedaços, provolone, parmeggiano, uma garrafa de vinho e sumos. Giada, porém, não tinha fome, a Juventus servia bem como alimento. 

A meio do jogo, Giada disse qualquer coisa indecifrável, voltou-se para o lado e caiu. O Pai tentou acordá-la mas depressa entendeu que aquele não era um sono qualquer, Giada tinha entrado em coma. 

Foi levada de urgência até ao Hospital mais próximo, o seu pequeno corpo alvo de exames, furos, teorias. Ninguém sabia a que propósito ou de onde tinha vindo aquele desligar súbito de olhos e cérebro. Giada ficou em observação. Até hoje. Neste quarto onde uma máquina faz bip bip e o som que se ouve é um som de quase morte. A mãe dorme numa cadeira ao lado e as flores respiram devagarinho, em respeito. 

A meio da noite, por entre os sons de pantufas e cigarros queimados em frente às estrelas e às luzes da cidade, o Pai de Giada irrompeu pelo quatro adentro, abriu as luzes, chamou a Mãe de Giada e disse para os enfermeiros: "vamos, vamos, por aqui". Os enfermeiros traziam uma mesa que pousaram ao lado da cama, com um computador em cima. O Pai abriu-o, carregou no play e a cara de Alessandro Del Piero apareceu de repente a falar a Giada: dizia-lhe que esperava por ela no relvado, queria que ela lhe fosse dar um beijo e ver os seus golos. O Pai passou cento e quarenta e duas vezes a mensagem até o dia começar a sair da própria morte em que estava dormido. A mãe tinha a sua mão na mão da filha. "Põe mais uma vez o vídeo", pediu ao Pai. E ele carregava no play, olhava a filha enquanto Del Piero falava e depois, quando chegava ao fim, voltava a carregar no play. Fez isto mais duzentas e três vezes, embora não notasse - a ele, pareceram-lhe 10 ou 11, de tal modo estava concentrado nas feições de Giada.
Foi quando a Mãe já dormia sobre o braço da filha, que sentiu um leve movimento na mão, primeiro quase imperceptível, depois, aos poucos, cada vez mais vigoroso e claro: Giada movia-se. Os dedos, a mão, depois o braço, os pés por debaixo dos cobertores, tudo isto Pai, Mãe e dois enfermeiros viam naquele clarear de dia em Crotone, enquanto outros acordavam, torravam pão ou saíam para o emprego. Se víssemos o Hospital de fora, não podíamos adivinhar que, de entre todas aquelas janelas, uma abria o céu para beijos e abraços, gritos, canções, conversas. O quarto tinha deixado a quase morte e era agora uma janela para a quase vida. Giada, pouco a pouco, movimento a movimento, antecipava o momento de abrir os olhos e a alma ao mundo.

Ainda de olhos fechados, falou. Disse: "Mãe". E a mãe abraçou-a, disse: "estou aqui, filha" e a filha, cansada de ver golos de Alessandro na escuridão dos sentidos, abriu os olhos. Horas mais tarde, contam os relatos mais fidedignos, pediu gelado de baunilha e stracciatella. Foi golo de Del Piero.

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