quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

O meu Dakar futebolístico - I - Peru

O Peru é uma manta de retalhos a lã de alpaca. Puno, Cuzco, Apurimac, Ayacucho, Arequipa, Moquegua, Tacna - tudo nomes que remetem os sentidos para a ancestralidade indígena e sabedoria sem sábios científicos. Muito antes de existirem laboratórios ocidentalizados à descoberta de técnicas, saberes, tecnologias ou desmames oraculares já os incas debitavam em Quechua ou Aimará revelações transcendentes sobre o mundo moderno - sim, este onde hoje temos o prazer de sentar a nossa existência. 

Alguém, um dia, avisou o mundo da descoberta de Machu Picchu e fez uma festa muito colorida, com champanhe francês e tudo, sobre a prodigiosa aventura do encontro. O que não ficou escrito em acta planetária - e devia - foi que Machu Picchu, assim como todas as terras e baldios peruanos, estava já descoberto há muito tempo. Problemas de comunicação, talvez, visto que os Incas, mais preocupados em criar monumentais fontes e túneis de regadio e socalcos de plantação de onde pudessem tirar a barriguinha de misérias, se esqueceram inexplicavelmente de criar a internet sem fios. 

Um ponto a menos para os Incas, embora não estejamos ainda certos de que essa fosse a prioritária e evidente necessidade por aquelas alturas. Entre lamas e ar rarefeito, repenicando anãs de cabelos brilhantes e a adoração aos deuses, subjaz ainda assim, como templo antigo debaixo das pedras de catedrais espanholas, o império cerebral de um povo que, à falta de twitter e facebook, fez pela vida e inventou, sem termómetro nem microscópio, a temperatura e a lupa da ciência moderna. Incas - 1, Balão de Erlenmeyer - 0.

A primeira vez que vi o Peru, estava no meio de uma ilha do Lago Titikaka. Pareceu-me aceitável, embora esperasse mais. Tinha terra, árvores, pássaros e pessoas - nada que não tivesse visto já na televisão, sinceramente. Achei até um pouco mundano, quase pedestre. Mas deixei-me ficar a beber o vinho chileno enquanto sol e lua, em gestos opostos, apareciam aos meus olhos. Não sei se foi da graduação do líquido, se dos lábios ressequidos pela fermentação de humidade, mas a certa altura achei o Peru bonito, embora estivesse na Bolívia. Sempre tive este problema de achar que o peru da vizinha era mais bonito que o meu - uma insatisfação galopante que clinicamente fui tratando com formas de adulterar a sobriedade. E hoje sou um homem quase feliz - sim, tenho noção do pecado.

Podia perder-me aqui em episódios sobre o meu Dakar (essa cidade profundamente sul-americana!) por terras peruanas, todos entre o desvario indígena e o conhecimento do sublime, mas opto meticulosamente apenas por um para não maçar muito a audiência - é suficiente um Paulo Coelho neste mundo, não há necessidade de aniquilarmos já a existência: o dia em que o futebol me salvou de um tiro nas costeletas.

E foi mais ou menos assim: estávamos, eu e a minha companhia, em Tacna, cidade peruana fronteiriça com o Chile. Noite bem regada a vodka, vinho e papoilas, chovia do céu aquele longo véu das noites tranquilas e a brasileira que me acompanhava saiu de um bar a querer beijar as poças de água que se formavam no chão. Estava decididamente na altura de ir tentar encontrar a pensão -3 estrelas onde tínhamos uma cama, meio-lavatório e um peruano mal parido na recepção à nossa espera. O problema colocava-se da seguinte maneira: onde é que estávamos?, assim, de forma simples e delicada. Não sabíamos bem. Mas sabíamos que estávamos em Tacna, isso sabíamos - menos mal, portanto. 

Como homem (e deixemos de lado a questão de a minha companhia por esta altura estar a imitar o Rossi com os joelhos), competia-me a função de mapear a cidade, encontrar-lhe referências, reconhecer-lhe direcções. A custo, muito a custo, tacteei o solo, ouvi-lhe as entranhas de Quechua e segui orgulhoso por uma fronteira de ruelas em direcção ao sol poente - que nunca morre. Como é evidente nestas coisas da divindade, os seres supremos enganaram-me e acabei perdido num esconso beco com vista para as estrelas. Voltei atrás, enquanto carregava um peso morto pelos braços, mas era demasiado tarde: o Agustín tinha encontrado os seus turistas da noite. 

Vejamos: numa sociedade pobre, o parvo turista serve perfeitamente os intentos da economia nacional, não comecemos agora um longo trajecto em dissertações pueris acerca da criminalidade e do diz-que-disse e do "ali tenho medo" que isso é coisa para ficar contabilizada nas prateleiras dos imbecilóides. Agustín encontrou-nos e é só - foi mais esperto, o que, não menosprezando a sageza real do peruano, não era de modo nenhum tão difícil assim, visto que, segundos antes de Agustín ter encontrado a sua presa, a brasileira que me acompanhava (e eu também, mas isso não interessa para a novela) cantava a 10 gargantas músicas esquecidas de Vinicius de Moraes. Ora, se há coisa que o Agustín nunca gostou foi dos anos em que Vinicius fez parceria com Toquinho. Tivéssemos cantado Vinicius pré-Toquinho e muito provavelmente Agustín ter-nos-ia dado rédea solta para nos perdermos por mais umas horas na bela cidade triste de Tacna. Não foi o caso: o peruano num gesto rápido e solto amarrou uma arma à costela deste que vos fala e disse: "y ahora, cabrón?", bonitas palavras que mereceram resposta à altura da brasileira: "cabrón é o caralho!". Isto comigo e uma pistola no meio, ressalve-se. 

As mulheres não são a coisinha mais bonita que há neste mundo? Então não são? Um gajo com um peruano alucinado ao lado, uma arma a querer pulular e a nossa companheira bêbada aos insultos ao agressor. Isto de ser homem às vezes é um bocadinho chato. À esquerda, uma bezana cantava e insultava o peruano, enquanto batia com os dentes na lama, à direita um Agustín bêbado com uma arma na minha barriga. É nestes momentos que nos perguntamos: "não há foto? Quero meter no facebook". Não havia. E foi aí que começou a minha longa dissertação de sobrevivência: falei de bola. Que mais havia de falar em situação tão delicada? Falei tudo o que me vinha à cabeça, numa demência tal que cheguei a sentir os meus três companheiros - conte-se a arma nisto, que é de notável importância - pasmados a ouvir-me, quase sóbrios. 

O problema foi - e isto confidenciou-me o cérebro depois - que, de futebol peruano, eu conhecia pouca coisa, quase nada. Mas ninguém diria, se ouvisse o meu discurso eloquente naqueles minutos em que passeávamos por Tacna, alegre e extremamente mijadinhos da silva. Acho que houve Cubillas (claro), Alianza Lima e não sei, não tenho a certeza, mas acho que cheguei a vociferar qualquer coisa como: "Y Vargas Llosa?, que delantero!". O certo - e não me perguntem como nem porquê - é que de repente estávamos, eu, a brasileira, o peruano e a arma, em farta cavaqueira com o Agustín a levar-nos muito simpaticamente até ao nosso ninho de ratos. 

E explicar isto, nesta noite em que as estrelas são as mesmas (exceptuando uma que decidiu ir morar noutra galáxia, por causa da crise) que nos viram em Tacna, há quatro anos atrás? Digam lá que o futebol não é bonito.


sexta-feira, 13 de janeiro de 2012

Eu e a Maçonaria


Não consigo compreender o problema que alguns têm com a Maçonaria, nem qual a vergonha de alguém se assumir como Maçon: ser Maçon é ter uma profissão nobre como outra qualquer. 
Passo a explicar, contando esta pequena história sobre a minha relação com a Maçonaria, tentando elucidar as mentes mais distraídas:

Andava eu pelos meus 23/24 anos, quando, após uma noite muito bem regada (com comparsas onde se inclui o outro escriba deste blog) e recheada de peripécias, cheguei a casa a horas que o Venerável considerou indignas. Ah, as eternas questiúnculas geracionais!

Visto que a minha capacidade de argumentação estava bastante toldada, não o consegui convencer a abdicar da ideia de me instruir uma acção pedagógica - vulgo castigo – que consistiu em fazer de mim o servente do pedreiro (que, como se sabe, se diz Maçon em francês) que andava a construir um anexo lá em casa. Tentei – juro que tentei! – demovê-lo, mas a reincidência na hora de chegada (aliada, vá, a algum laxismo na hora de pegar nos livros, com as devidas consequências nas respectivas épocas de exame) precipitou a minha entrada nesse mundo obscuro. “Bem-vindo ao mundo da Maçonaria” poderia ter sido o lema desse final de noite/início de manhã, ao contrário do rude e vil “Pega nos baldes de massa antes que a gente tenha que se chatear a sério” com que se fui prendado no meu ritual de iniciação. 

Ora, se à minha vontade inicial (que era nula) se juntar a necessidade da ingestão frequente de líquidos, aquelas primeiras horas de Maçonaria foram um completo tormento. Vi e ouvi coisas muito chocantes. Senti-me deslocado. Vivi momentos absoutamente traumáticos, enquanto acartava baldes de massa à razão de 4 a 6 baldes por minuto e ouvia o “Tó”, o Grão-Mestre da Maçonaria Pegacha a dizer para ser mais rápido e que já tinha visto “gajas com mais bigode que tu a queixarem-se menos”. Pudera, pensava eu: a capacidade de sofrimento de um ser humano é directamente proporcional à sua capilosidade infra-nasal… Isso é uma verdade universal que o povo português tem vindo a demonstrar nos últimos 9 séculos e pela qual deixei crescer uma barba que já não vê Gilette vai para 4 anos!

Aqui se compreende o sofrimento do aprendiz de Maçon: enquanto ser Maçon é, por si só, uma posição honrada, onde se pode (deve!) exigir o melhor do seu ajudante, utilizando todo o vernáculo possível e imaginário, o intuito nobre é o de preparar o pobre servente para um mundo duro, lá fora, para que um dia possa ser ele próprio um Grão-Mestre da alvenaria. Por seu lado, o imberbe aprendiz resigna-se a uns secos “tá bem” e “não me moas o juízo”… Registe-se a filantropia de tudo isto: o real reforço do carácter através da busca pela perfeição – haja cerveja e asneirada, claro… 

E enquanto balde vai e balde vem - no meio de dialectos estranhos, com palavras e expressões como "batenêra", "ai mãããã" e "tu és mazé malhuque" - recomeçam a entrar os líquidos mais frescos na garganta e toda a bruma desvanece e a razão pela qual tudo aconteceu começa a sobressair: construir um abrigo – há quem lhe chame poiso – onde poderemos albergar os nossos e, no final, receber (ou poupar) uns cobres por isso.

E, ao cair da noite, a verticalidade da Organização dilui-se e invade-se um espírito de fraternidade e igualdade indescritíveis: o chouriço assado e o pão são divididos irmãmente e o vinho “é para acabar, que na fica aí a fazer nada”.

Só não percebi a parte de usar avental e colares: o meu Grão-Mestre usava uma pá de pedreiro e um palito ao canto da boca, que lhe impunham grande respeito e lhe davam um ar bem menos apaneleirado!