O
Peru é uma manta de retalhos a lã de alpaca. Puno, Cuzco, Apurimac,
Ayacucho, Arequipa, Moquegua, Tacna - tudo nomes que remetem os sentidos
para a ancestralidade indígena e sabedoria sem sábios científicos.
Muito antes de existirem laboratórios ocidentalizados à descoberta de
técnicas, saberes, tecnologias ou desmames oraculares já
os incas debitavam em Quechua ou Aimará revelações transcendentes sobre
o mundo moderno - sim, este onde hoje temos o prazer de sentar a nossa
existência.
Alguém,
um dia, avisou o mundo da descoberta de Machu Picchu e fez uma festa
muito colorida, com champanhe francês e tudo, sobre a prodigiosa
aventura do encontro. O que não ficou escrito em acta planetária - e
devia - foi que Machu Picchu, assim como todas as terras e baldios
peruanos, estava já descoberto há muito tempo. Problemas de comunicação,
talvez, visto que os Incas, mais preocupados em criar monumentais
fontes e túneis de regadio e socalcos de plantação de onde pudessem
tirar a barriguinha de misérias, se esqueceram inexplicavelmente de
criar a internet sem fios.
Um
ponto a menos para os Incas, embora não estejamos ainda certos de que
essa fosse a prioritária e evidente necessidade por aquelas alturas.
Entre lamas e ar rarefeito, repenicando anãs de cabelos brilhantes e a
adoração aos deuses, subjaz ainda assim, como templo antigo debaixo das
pedras de catedrais espanholas, o império cerebral de um povo que, à
falta de twitter e facebook, fez pela vida e inventou, sem termómetro
nem microscópio, a temperatura e a lupa da ciência moderna. Incas - 1,
Balão de Erlenmeyer - 0.
A
primeira vez que vi o Peru, estava no meio de uma ilha do Lago
Titikaka. Pareceu-me aceitável, embora esperasse mais. Tinha terra,
árvores, pássaros e pessoas - nada que não tivesse visto já na
televisão, sinceramente. Achei até um pouco mundano, quase pedestre. Mas
deixei-me ficar a beber o vinho chileno enquanto sol e lua, em gestos
opostos, apareciam aos meus olhos. Não sei se foi da graduação do líquido,
se dos lábios ressequidos pela fermentação de humidade, mas a certa
altura achei o Peru bonito, embora estivesse na Bolívia. Sempre tive
este problema de achar que o peru da vizinha era mais bonito que o meu -
uma insatisfação galopante que clinicamente fui tratando com formas de
adulterar a sobriedade. E hoje sou um homem quase feliz - sim, tenho
noção do pecado.
Podia
perder-me aqui em episódios sobre o meu Dakar (essa cidade
profundamente sul-americana!) por terras peruanas, todos entre o
desvario indígena e o conhecimento do sublime, mas opto meticulosamente
apenas por um para não maçar muito a audiência - é suficiente um Paulo
Coelho neste mundo, não há necessidade de aniquilarmos já a existência: o
dia em que o futebol me salvou de um tiro nas costeletas.
E
foi mais ou menos assim: estávamos, eu e a minha companhia, em Tacna,
cidade peruana fronteiriça com o Chile. Noite bem regada a vodka, vinho e
papoilas, chovia do céu aquele longo véu das noites tranquilas e a
brasileira que me acompanhava saiu de um bar a querer beijar as poças de
água que se formavam no chão. Estava decididamente na altura de ir
tentar encontrar a pensão -3 estrelas onde tínhamos uma cama,
meio-lavatório e um peruano mal parido na recepção à nossa espera. O
problema colocava-se da seguinte maneira: onde é que estávamos?, assim,
de forma simples e delicada. Não sabíamos bem. Mas sabíamos que
estávamos em Tacna, isso sabíamos - menos mal, portanto.
Como
homem (e deixemos de lado a questão de a minha companhia por esta
altura estar a imitar o Rossi com os joelhos), competia-me a função de
mapear a cidade, encontrar-lhe referências, reconhecer-lhe direcções. A
custo, muito a custo, tacteei o solo, ouvi-lhe as entranhas de Quechua e
segui orgulhoso por uma fronteira de ruelas em direcção ao sol poente -
que nunca morre. Como é evidente nestas coisas da divindade, os seres
supremos enganaram-me e acabei perdido num esconso beco com vista para
as estrelas. Voltei atrás, enquanto carregava um peso morto pelos
braços, mas era demasiado tarde: o Agustín tinha encontrado os seus
turistas da noite.
Vejamos:
numa sociedade pobre, o parvo turista serve perfeitamente os intentos
da economia nacional, não comecemos agora um longo trajecto em
dissertações pueris acerca da criminalidade e do diz-que-disse e do "ali
tenho medo" que isso é coisa para ficar contabilizada nas prateleiras
dos imbecilóides. Agustín encontrou-nos e é só - foi mais esperto, o que, não menosprezando a sageza real do peruano, não era de modo nenhum
tão difícil assim, visto que, segundos antes de Agustín ter encontrado a
sua presa, a brasileira que me acompanhava (e eu também, mas isso não
interessa para a novela) cantava a 10 gargantas músicas esquecidas de
Vinicius de Moraes. Ora, se há coisa que o Agustín nunca gostou foi dos
anos em que Vinicius fez parceria com Toquinho. Tivéssemos cantado
Vinicius pré-Toquinho e muito provavelmente Agustín ter-nos-ia dado
rédea solta para nos perdermos por mais umas horas na bela cidade triste
de Tacna. Não foi o caso: o peruano num gesto rápido e solto amarrou
uma arma à costela deste que vos fala e disse: "y ahora, cabrón?",
bonitas palavras que mereceram resposta à altura da brasileira: "cabrón é
o caralho!". Isto comigo e uma pistola no meio, ressalve-se.
As
mulheres não são a coisinha mais bonita que há neste mundo? Então não
são? Um gajo com um peruano alucinado ao lado, uma arma a querer pulular
e a nossa companheira bêbada aos insultos ao agressor. Isto de ser
homem às vezes é um bocadinho chato. À esquerda, uma bezana cantava e
insultava o peruano, enquanto batia com os dentes na lama, à direita um
Agustín bêbado com uma arma na minha barriga. É nestes momentos que nos
perguntamos: "não há foto? Quero meter no facebook". Não havia. E foi aí
que começou a minha longa dissertação de sobrevivência: falei de bola.
Que mais havia de falar em situação tão delicada? Falei tudo o que me
vinha à cabeça, numa demência tal que cheguei a sentir os meus três
companheiros - conte-se a arma nisto, que é de notável importância -
pasmados a ouvir-me, quase sóbrios.
O
problema foi - e isto confidenciou-me o cérebro depois - que, de
futebol peruano, eu conhecia pouca coisa, quase nada. Mas ninguém diria,
se ouvisse o meu discurso eloquente naqueles minutos em que passeávamos
por Tacna, alegre e extremamente mijadinhos da silva. Acho que houve
Cubillas (claro), Alianza Lima e não sei, não tenho a certeza, mas acho
que cheguei a vociferar qualquer coisa como: "Y Vargas Llosa?, que
delantero!". O certo - e não me perguntem como nem porquê - é que de
repente estávamos, eu, a brasileira, o peruano e a arma, em farta
cavaqueira com o Agustín a levar-nos muito simpaticamente até ao nosso
ninho de ratos.
E
explicar isto, nesta noite em que as estrelas são as mesmas
(exceptuando uma que decidiu ir morar noutra galáxia, por causa da
crise) que nos viram em Tacna, há quatro anos atrás? Digam lá que o
futebol não é bonito.