O som
frio do Hospital à noite. Ouvem-se passos de pantufas do lado de fora do
quarto, conversas em surdina de enfermeiras, vêem-se estrelas e luzes
da cidade, ouvem-se carros, poucos. Há uma máquina que faz bip bip e o
ressonar para dentro de uma menina deitada na cama. A mãe dorme numa
cadeira ao lado. As flores respiram devagarinho, em respeito. Uma colcha
e restos de bolos dentro de uma caixa. Tudo é quase morte.
Antes de
Giada chegar a esta noite, outras noites e dias passaram-se. Mas no que
importa a esta história, teremos de recuar duas semanas.
Apesar
de viver em San Giovanni di Fiore, no Sul de Itália, e Del Piero jogar
nesse dia em Turim, a muitos, demasiados, quilómetros um do outro, Giada deixara fecharem-se-lhe os olhos e a alma num sonho quase real, enquanto esperava, em frente à televisão, pelo jogo da sua Vecchia Signora:
percorrera a pé, depois em cima de um piano e, no fim, conduzindo uma
árvore a distância que a separava da porta do prédio à entrada do
estádio da Juventus. Fizera o trajecto com amigos, memórias de jogos e
jogadores, cachecóis e a euforia própria de quem vai ter com a sua
tribo. A meio do caminho, sentiu-se mal, uma pontada no coração que
calou para dentro - havia jogo, nenhuma morte nem doença eram
admissíveis. Del Piero esperava-a no relvado.
Perto do
estádio, Giada lembrou-se da dor que sentira, balbuciou a um amigo uma
relativa indisposição e esqueceu-se de tudo quando começou a ouvir as
batucadas que vinham de dentro do recinto. Cânticos ecoavam para fora e
chegavam à cidade, pelas bordas do estádio, como lava que subia,
torneava uma a uma as bancadas, curvava no topo do estádio e depois
descia lentamente até aos ouvidos de Giada. Não mais se lembrou da dor,
tinha o corpo invadido pela emoção quente da infância.
O Pai
acordou-a: "vai começar". Ela foi ao quarto, beijou o poster de
Alessandro que tinha perto da cama, fez duas rezas em honra de não se
sabe bem quem, tocou três vezes com a mão direita no símbolo da
Juventus, depois três com a esquerda, depois uma com a direita, outra
com a esquerda e quando já não sabia quantas vezes tinha tocado inventou
para si própria de que estava tudo equilibrado. Voltou a tocar no
símbolo, agora com as duas mãos ao mesmo tempo, e pensou para si: "vamos
ganhar".
Na sala,
o jogo já começara. O Pai recebeu-a com um sorriso, abriu-lhe lugar no
sofá, beijou-a e passou-lhe um cachecol por cima dos ombros. Numa mesa
em frente, bruschettas e schiacciatas, foccaccetas, pão cortado aos
pedaços, provolone, parmeggiano, uma garrafa de vinho e sumos. Giada,
porém, não tinha fome, a Juventus servia bem como alimento.
A meio
do jogo, Giada disse qualquer coisa indecifrável, voltou-se para o lado e
caiu. O Pai tentou acordá-la mas depressa entendeu que aquele não era
um sono qualquer, Giada tinha entrado em coma.
Foi
levada de urgência até ao Hospital mais próximo, o seu pequeno corpo
alvo de exames, furos, teorias. Ninguém sabia a que propósito ou de onde
tinha vindo aquele desligar súbito de olhos e cérebro. Giada ficou em
observação. Até hoje. Neste quarto onde uma máquina faz bip bip e o som
que se ouve é um som de quase morte. A mãe dorme numa cadeira ao lado e
as flores respiram devagarinho, em respeito.
A meio
da noite, por entre os sons de pantufas e cigarros queimados em frente
às estrelas e às luzes da cidade, o Pai de Giada irrompeu pelo quatro
adentro, abriu as luzes, chamou a Mãe de Giada e disse para os
enfermeiros: "vamos, vamos, por aqui". Os enfermeiros traziam uma mesa
que pousaram ao lado da cama, com um computador em cima. O Pai abriu-o,
carregou no play e a cara de Alessandro Del Piero apareceu de repente a
falar a Giada: dizia-lhe que esperava por ela no relvado, queria que ela
lhe fosse dar um beijo e ver os seus golos. O Pai passou cento e
quarenta e duas vezes a mensagem até o dia começar a sair da própria
morte em que estava dormido. A mãe tinha a sua mão na mão da filha. "Põe
mais uma vez o vídeo", pediu ao Pai. E ele carregava no play, olhava a
filha enquanto Del Piero falava e depois, quando chegava ao fim, voltava
a carregar no play. Fez isto mais duzentas e três vezes, embora não
notasse - a ele, pareceram-lhe 10 ou 11, de tal modo estava concentrado
nas feições de Giada.
Foi
quando a Mãe já dormia sobre o braço da filha, que sentiu um leve
movimento na mão, primeiro quase imperceptível, depois, aos poucos, cada
vez mais vigoroso e claro: Giada movia-se. Os dedos, a mão, depois o
braço, os pés por debaixo dos cobertores, tudo isto Pai, Mãe e dois
enfermeiros viam naquele clarear de dia em Crotone, enquanto outros
acordavam, torravam pão ou saíam para o emprego. Se víssemos o Hospital
de fora, não podíamos adivinhar que, de entre todas aquelas janelas, uma
abria o céu para beijos e abraços, gritos, canções, conversas. O quarto
tinha deixado a quase morte e era agora uma janela para a quase vida.
Giada, pouco a pouco, movimento a movimento, antecipava o momento de
abrir os olhos e a alma ao mundo.