terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

Giada e Del Piero - um golo numa baliza às escuras

O som frio do Hospital à noite. Ouvem-se passos de pantufas do lado de fora do quarto, conversas em surdina de enfermeiras, vêem-se estrelas e luzes da cidade, ouvem-se carros, poucos. Há uma máquina que faz bip bip e o ressonar para dentro de uma menina deitada na cama. A mãe dorme numa cadeira ao lado. As flores respiram devagarinho, em respeito. Uma colcha e restos de bolos dentro de uma caixa. Tudo é quase morte. 
Antes de Giada chegar a esta noite, outras noites e dias passaram-se. Mas no que importa a esta história, teremos de recuar duas semanas. 
Apesar de viver em San Giovanni di Fiore, no Sul de Itália, e Del Piero jogar nesse dia em Turim, a muitos, demasiados, quilómetros um do outro, Giada deixara fecharem-se-lhe os olhos e a alma num sonho quase real, enquanto esperava, em frente à televisão, pelo jogo da sua Vecchia Signora: percorrera a pé, depois em cima de um piano e, no fim, conduzindo uma árvore a distância que a separava da porta do prédio à entrada do estádio da Juventus. Fizera o trajecto com amigos, memórias de jogos e jogadores, cachecóis e a euforia própria de quem vai ter com a sua tribo. A meio do caminho, sentiu-se mal, uma pontada no coração que calou para dentro - havia jogo, nenhuma morte nem doença eram admissíveis. Del Piero esperava-a no relvado.
Perto do estádio, Giada lembrou-se da dor que sentira, balbuciou a um amigo uma relativa indisposição e esqueceu-se de tudo quando começou a ouvir as batucadas que vinham de dentro do recinto. Cânticos ecoavam para fora e chegavam à cidade, pelas bordas do estádio, como lava que subia, torneava uma a uma as bancadas, curvava no topo do estádio e depois descia lentamente até aos ouvidos de Giada. Não mais se lembrou da dor, tinha o corpo invadido pela emoção quente da infância.
O Pai acordou-a: "vai começar". Ela foi ao quarto, beijou o poster de Alessandro que tinha perto da cama, fez duas rezas em honra de não se sabe bem quem, tocou três vezes com a mão direita no símbolo da Juventus, depois três com a esquerda, depois uma com a direita, outra com a esquerda e quando já não sabia quantas vezes tinha tocado inventou para si própria de que estava tudo equilibrado. Voltou a tocar no símbolo, agora com as duas mãos ao mesmo tempo, e pensou para si: "vamos ganhar". 
Na sala, o jogo já começara. O Pai recebeu-a com um sorriso, abriu-lhe lugar no sofá, beijou-a e passou-lhe um cachecol por cima dos ombros. Numa mesa em frente, bruschettas e schiacciatas, foccaccetas, pão cortado aos pedaços, provolone, parmeggiano, uma garrafa de vinho e sumos. Giada, porém, não tinha fome, a Juventus servia bem como alimento. 

A meio do jogo, Giada disse qualquer coisa indecifrável, voltou-se para o lado e caiu. O Pai tentou acordá-la mas depressa entendeu que aquele não era um sono qualquer, Giada tinha entrado em coma. 

Foi levada de urgência até ao Hospital mais próximo, o seu pequeno corpo alvo de exames, furos, teorias. Ninguém sabia a que propósito ou de onde tinha vindo aquele desligar súbito de olhos e cérebro. Giada ficou em observação. Até hoje. Neste quarto onde uma máquina faz bip bip e o som que se ouve é um som de quase morte. A mãe dorme numa cadeira ao lado e as flores respiram devagarinho, em respeito. 

A meio da noite, por entre os sons de pantufas e cigarros queimados em frente às estrelas e às luzes da cidade, o Pai de Giada irrompeu pelo quatro adentro, abriu as luzes, chamou a Mãe de Giada e disse para os enfermeiros: "vamos, vamos, por aqui". Os enfermeiros traziam uma mesa que pousaram ao lado da cama, com um computador em cima. O Pai abriu-o, carregou no play e a cara de Alessandro Del Piero apareceu de repente a falar a Giada: dizia-lhe que esperava por ela no relvado, queria que ela lhe fosse dar um beijo e ver os seus golos. O Pai passou cento e quarenta e duas vezes a mensagem até o dia começar a sair da própria morte em que estava dormido. A mãe tinha a sua mão na mão da filha. "Põe mais uma vez o vídeo", pediu ao Pai. E ele carregava no play, olhava a filha enquanto Del Piero falava e depois, quando chegava ao fim, voltava a carregar no play. Fez isto mais duzentas e três vezes, embora não notasse - a ele, pareceram-lhe 10 ou 11, de tal modo estava concentrado nas feições de Giada.
Foi quando a Mãe já dormia sobre o braço da filha, que sentiu um leve movimento na mão, primeiro quase imperceptível, depois, aos poucos, cada vez mais vigoroso e claro: Giada movia-se. Os dedos, a mão, depois o braço, os pés por debaixo dos cobertores, tudo isto Pai, Mãe e dois enfermeiros viam naquele clarear de dia em Crotone, enquanto outros acordavam, torravam pão ou saíam para o emprego. Se víssemos o Hospital de fora, não podíamos adivinhar que, de entre todas aquelas janelas, uma abria o céu para beijos e abraços, gritos, canções, conversas. O quarto tinha deixado a quase morte e era agora uma janela para a quase vida. Giada, pouco a pouco, movimento a movimento, antecipava o momento de abrir os olhos e a alma ao mundo.

Ainda de olhos fechados, falou. Disse: "Mãe". E a mãe abraçou-a, disse: "estou aqui, filha" e a filha, cansada de ver golos de Alessandro na escuridão dos sentidos, abriu os olhos. Horas mais tarde, contam os relatos mais fidedignos, pediu gelado de baunilha e stracciatella. Foi golo de Del Piero.

quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012

O mundo à volta da mesa

Era noite, mas não muito tarde…

Tínhamos chegado nesse dia da Mongólia, numa viagem que durou (terão sido) 12 horas (?) de comboio, mais 8 de troca de carris na fronteira  - sem direito a ida à casa de banho nem saída da carruagem, que isto ao chegar à China tem logo que se perceber quem manda -, umas 6 horas de mini-bus e mais outras tantas noutro comboio, desta vez em terceira classe, para chegar a Pequim. Ah, a terceira classe… A mistura do cheiro a pés com tabaco e comida e a parafernália típica dos sítios com gente a mais para espaço a menos.

Já a tínhamos topado na espécie de autocarro e, curiosamente, também era daquelas, como nós, que viajam na classe utilizada pelos nativos. Aquele seu ar, a meio caminho entre o exótico e o arabesco… Parecia, sei lá, familiar, ali, no meio dos chinos… A tez escura, os olhos profundos, escavados. Se me esforçar muito, lembro-me que talvez tenhamos trocado um aceno de cabeça antes de nos enfiarmos no saco-cama e fingirmos que conseguíamos dormir no meio daquela balbúrdia.
À chegada a Pequim, entre a excitação natural de viver “aquilo” pela primeira vez e o cuidado habitual de tratar logo de acomodação, combinámos jantar. Nós, ela e os restantes 10 (holandeses, ingleses, japoneses, gregos, franceses…) com que tínhamos partilhado viagem desde a Mongólia e dos quais nos separámos à entrada para o comboio, já que eles iam para a 1ª classe, os pedantes…

Só ela apareceu no local e hora combinadas. Nós chegámos 15 minutos depois (mais 5 e ela bazava) a suar, porque tínhamos ido ver o pôr-do-Sol (e o descerrar da bandeira) em Tiananmen e - como se não bastasse o atraso, ainda fomos beber umas geladinhas -  e vínhamos a pingar da corrida frenética que encetámos quando nos apercebemos das horas (damn you, Tsing-Tao).

We’re so sorry, Gina. 5 minutes and we’re ready to go…
Oh, I know your kind, Latins. I’ll meet you in 20 at the bar.

Confesso que sou dos gajos mais esquisitos com a comida que conheço. Um verdadeiro triste, verdade seja dita. Mas não consigo, que fazer?
Leguminosas (todas e qualquer uma), queijo, pimentos, pepino, borrego , entre outras iguarias, não entram aqui no sistema.
Mas, naquele dia, com o brilho dos neóns da rua de trás, meio fundidos, meio histéricos, rodeado de cabeleireiras de alterne (de manhã e tarde, cabeleireiras; à noite, putas) - num triste mas terno aproveitamento dos parcos recursos existentes - e ratazanas a circundar as pernas, a fome não era negra: ela própria pedia a minha clemência. Mesmo não gostando, tinha que carregar!
Confiei ao Bruce a missão – sempre confiei nele cegamente, porque razão, numa situação destas seria diferente? – de entrar na cozinha, com poças de água lamacenta por todo o lado e escolher a ementa: se nenhum de nós sabia ler mandarim, como raio haveríamos de escolher o que comer? Isto sim é a verdadeira magia de viajar: sim, a Tiananmen e a Cidade Proibida, sim a Grande Muralha, mas aquela rua nojenta, com um restaurante que em Portugal já teria fechado nos anos 80 (pouco tempo depois de abrir) tinha uma mística tão diferente, tão peculiar, que a envolvência tornou absolutamente mítica. Tenho a certeza absoluta - e não preciso perguntar-lhes - que eles sentem exactamente o mesmo que eu!
Ele, ciente da peça que o acompanhava, não conseguiu melhor do que apontar para meia dúzia de alimentos com aspecto minimamente aceitável que jaziam por ali, no meio das panelas com aspecto de quem anda há 20 anos a fritar óleo e as facas com resquícios de todo o tipo de animais e plantas.

Vais gostar, bro. Relax!
Não sei, não… Pelo sim, pelo não, manda lá vir mais 3 Tsing-Tao, vá!

Não só me soube tudo (só reconheci o arroz e os pimentos no meio daquelas cores todas) optimamente com a conversa com a Gina foi do mais enriquecedor possível: Afegã, vivia no Canadá com os pais como exilada política, desde a chegada dos Talibãs, há cerca de 20 e qualquer coisa anos (ela teria os seus 30, na altura em que nos cruzámos) e, aquando da primeira visita ao país natal, na altura de voltar ao Canadá, informou os pais que queria viajar pelo mundo e que os 3 empregos que tinha tido nos últimos 3 anos tinham servido para juntar dinheiro para tal. Largou os pais em Kandahar, meteu-se em vários autocarros até ao Paquistão, daí para a Índia, e daí para a Europa, onde tinha começado o TransSiberiano. Encontrámo-nos em Pequim e ela ainda seguiu para o Tibete, de onde desceu: Tailândia, Laos, Cambodja, Filipinas, Austrália, you name it.
Ainda hoje sigo as viagens dela no Facebook. Agora anda pela América do Sul. A sortuda…

E vem isto a propósito da importância e prazer que me dá o “estar à mesa”. À mesa, passa-se, provavelmente, metade do tempo de qualidade da minha vida.
E quando me refiro à mesa, refiro também tudo o que precede o sentar para comer: o pensar no que fazer, o comprar os ingredientes, o vinho para o acompanhamento. O preparar a refeição, dar-lhe as pinceladas mágicas, os cheiros, as cores…
Quando saí de casa para a Faculdade, com 18 anos, não sabia – ah clichet, onde andavas tu? – estrelar um ovo. Verdade seja dita, ainda não sei… Fica sempre miserável, partido, sem jeito nenhum, absolutamente deprimente – mas saboroso, curiosamente! A minha mãe mandava-me uns Tupperwares com comida congelada, regra geral uma por refeição, e isto dava para 3 ou 4 dias da semana, mais uma jantarada fora e sexta-feira lá estava em Abrantes outra vez.
Acontece que um gajo cresce. E um gajo – pelo menos este gajo – tem a sorte de conhecer malta impecável, que faz o favor de ainda hoje ser amiga, e que tem jeito para cozinhar. Quem cozinha e gosta, sabe o bichinho que “isto” é: aprendes uns truques daqui, mais umas ideias dali e não tarda és tu a convidar malta para ir lá a casa.
E depois disto, aprendes mais. E torna-se habitual cozinhar. E torna-se viciante. E cada vez mais gostas de cozinhar: afinal de contas, se adoras comer, quem melhor que tu para fazer exactamente o que gostas, da maneira que mais gostas?
E depois oferecem-te livros e tu aproveitas ideias e metes o teu cunho pessoal. E o pessoal vai gostando, vai-te dando o benefício da dúvida: afinal, apesar de ser um esquisitinho, até dá uns toques.

Até que há O dia, aquele que marca a diferença, aquele a partir do qual tudo é diferente: o dia em que te aceitam como um grande - vá, razoável! - cozinheiro e te deixam (pausa, para enxugar as lágrimas) cozinhar a refeição de Natal lá de casa. Um gajo passa por testes árduos, como comer tagine 4 dias consecutivos em Marrocos – ou mesmo carne de borrego acabadinha de cair no chão e soprada pelo Marroquino mais decrépito possível -, salada russa, em plena Sibéria, pejadinha de pepino até ao tutano, a tal refeição pequinesa já descrita, entre tantos outros filmes imaginários, mas quando és designado, pelo teu próprio pai, o Grelhador oficial lá de casa, sentes que a tua vida está a ir pelo caminho certo em termos alimentícios.
E quando és tu a assar o cabrito no forno, quando a tua Mãe te concede o direito de tratares da refeição de Natal, não há nada que não possas fazer na cozinha: és, oficialmente, um Chef – admito que possa ter ganho uns pontos valentes quando fiz o arroz de lampreia (amanhadas por mim, inclusive) o ano passado e que ficou absolutamente divinal…

É por causa dessas e doutras que tais, que hoje o jantar é Coelho à Caçador!
Ah, e pelo sim pelo não, o acompanhamento vem da Adega da Cartuxa, que isto não está para brincadeiras…


quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

O meu Dakar futebolístico - I - Peru

O Peru é uma manta de retalhos a lã de alpaca. Puno, Cuzco, Apurimac, Ayacucho, Arequipa, Moquegua, Tacna - tudo nomes que remetem os sentidos para a ancestralidade indígena e sabedoria sem sábios científicos. Muito antes de existirem laboratórios ocidentalizados à descoberta de técnicas, saberes, tecnologias ou desmames oraculares já os incas debitavam em Quechua ou Aimará revelações transcendentes sobre o mundo moderno - sim, este onde hoje temos o prazer de sentar a nossa existência. 

Alguém, um dia, avisou o mundo da descoberta de Machu Picchu e fez uma festa muito colorida, com champanhe francês e tudo, sobre a prodigiosa aventura do encontro. O que não ficou escrito em acta planetária - e devia - foi que Machu Picchu, assim como todas as terras e baldios peruanos, estava já descoberto há muito tempo. Problemas de comunicação, talvez, visto que os Incas, mais preocupados em criar monumentais fontes e túneis de regadio e socalcos de plantação de onde pudessem tirar a barriguinha de misérias, se esqueceram inexplicavelmente de criar a internet sem fios. 

Um ponto a menos para os Incas, embora não estejamos ainda certos de que essa fosse a prioritária e evidente necessidade por aquelas alturas. Entre lamas e ar rarefeito, repenicando anãs de cabelos brilhantes e a adoração aos deuses, subjaz ainda assim, como templo antigo debaixo das pedras de catedrais espanholas, o império cerebral de um povo que, à falta de twitter e facebook, fez pela vida e inventou, sem termómetro nem microscópio, a temperatura e a lupa da ciência moderna. Incas - 1, Balão de Erlenmeyer - 0.

A primeira vez que vi o Peru, estava no meio de uma ilha do Lago Titikaka. Pareceu-me aceitável, embora esperasse mais. Tinha terra, árvores, pássaros e pessoas - nada que não tivesse visto já na televisão, sinceramente. Achei até um pouco mundano, quase pedestre. Mas deixei-me ficar a beber o vinho chileno enquanto sol e lua, em gestos opostos, apareciam aos meus olhos. Não sei se foi da graduação do líquido, se dos lábios ressequidos pela fermentação de humidade, mas a certa altura achei o Peru bonito, embora estivesse na Bolívia. Sempre tive este problema de achar que o peru da vizinha era mais bonito que o meu - uma insatisfação galopante que clinicamente fui tratando com formas de adulterar a sobriedade. E hoje sou um homem quase feliz - sim, tenho noção do pecado.

Podia perder-me aqui em episódios sobre o meu Dakar (essa cidade profundamente sul-americana!) por terras peruanas, todos entre o desvario indígena e o conhecimento do sublime, mas opto meticulosamente apenas por um para não maçar muito a audiência - é suficiente um Paulo Coelho neste mundo, não há necessidade de aniquilarmos já a existência: o dia em que o futebol me salvou de um tiro nas costeletas.

E foi mais ou menos assim: estávamos, eu e a minha companhia, em Tacna, cidade peruana fronteiriça com o Chile. Noite bem regada a vodka, vinho e papoilas, chovia do céu aquele longo véu das noites tranquilas e a brasileira que me acompanhava saiu de um bar a querer beijar as poças de água que se formavam no chão. Estava decididamente na altura de ir tentar encontrar a pensão -3 estrelas onde tínhamos uma cama, meio-lavatório e um peruano mal parido na recepção à nossa espera. O problema colocava-se da seguinte maneira: onde é que estávamos?, assim, de forma simples e delicada. Não sabíamos bem. Mas sabíamos que estávamos em Tacna, isso sabíamos - menos mal, portanto. 

Como homem (e deixemos de lado a questão de a minha companhia por esta altura estar a imitar o Rossi com os joelhos), competia-me a função de mapear a cidade, encontrar-lhe referências, reconhecer-lhe direcções. A custo, muito a custo, tacteei o solo, ouvi-lhe as entranhas de Quechua e segui orgulhoso por uma fronteira de ruelas em direcção ao sol poente - que nunca morre. Como é evidente nestas coisas da divindade, os seres supremos enganaram-me e acabei perdido num esconso beco com vista para as estrelas. Voltei atrás, enquanto carregava um peso morto pelos braços, mas era demasiado tarde: o Agustín tinha encontrado os seus turistas da noite. 

Vejamos: numa sociedade pobre, o parvo turista serve perfeitamente os intentos da economia nacional, não comecemos agora um longo trajecto em dissertações pueris acerca da criminalidade e do diz-que-disse e do "ali tenho medo" que isso é coisa para ficar contabilizada nas prateleiras dos imbecilóides. Agustín encontrou-nos e é só - foi mais esperto, o que, não menosprezando a sageza real do peruano, não era de modo nenhum tão difícil assim, visto que, segundos antes de Agustín ter encontrado a sua presa, a brasileira que me acompanhava (e eu também, mas isso não interessa para a novela) cantava a 10 gargantas músicas esquecidas de Vinicius de Moraes. Ora, se há coisa que o Agustín nunca gostou foi dos anos em que Vinicius fez parceria com Toquinho. Tivéssemos cantado Vinicius pré-Toquinho e muito provavelmente Agustín ter-nos-ia dado rédea solta para nos perdermos por mais umas horas na bela cidade triste de Tacna. Não foi o caso: o peruano num gesto rápido e solto amarrou uma arma à costela deste que vos fala e disse: "y ahora, cabrón?", bonitas palavras que mereceram resposta à altura da brasileira: "cabrón é o caralho!". Isto comigo e uma pistola no meio, ressalve-se. 

As mulheres não são a coisinha mais bonita que há neste mundo? Então não são? Um gajo com um peruano alucinado ao lado, uma arma a querer pulular e a nossa companheira bêbada aos insultos ao agressor. Isto de ser homem às vezes é um bocadinho chato. À esquerda, uma bezana cantava e insultava o peruano, enquanto batia com os dentes na lama, à direita um Agustín bêbado com uma arma na minha barriga. É nestes momentos que nos perguntamos: "não há foto? Quero meter no facebook". Não havia. E foi aí que começou a minha longa dissertação de sobrevivência: falei de bola. Que mais havia de falar em situação tão delicada? Falei tudo o que me vinha à cabeça, numa demência tal que cheguei a sentir os meus três companheiros - conte-se a arma nisto, que é de notável importância - pasmados a ouvir-me, quase sóbrios. 

O problema foi - e isto confidenciou-me o cérebro depois - que, de futebol peruano, eu conhecia pouca coisa, quase nada. Mas ninguém diria, se ouvisse o meu discurso eloquente naqueles minutos em que passeávamos por Tacna, alegre e extremamente mijadinhos da silva. Acho que houve Cubillas (claro), Alianza Lima e não sei, não tenho a certeza, mas acho que cheguei a vociferar qualquer coisa como: "Y Vargas Llosa?, que delantero!". O certo - e não me perguntem como nem porquê - é que de repente estávamos, eu, a brasileira, o peruano e a arma, em farta cavaqueira com o Agustín a levar-nos muito simpaticamente até ao nosso ninho de ratos. 

E explicar isto, nesta noite em que as estrelas são as mesmas (exceptuando uma que decidiu ir morar noutra galáxia, por causa da crise) que nos viram em Tacna, há quatro anos atrás? Digam lá que o futebol não é bonito.


sexta-feira, 13 de janeiro de 2012

Eu e a Maçonaria


Não consigo compreender o problema que alguns têm com a Maçonaria, nem qual a vergonha de alguém se assumir como Maçon: ser Maçon é ter uma profissão nobre como outra qualquer. 
Passo a explicar, contando esta pequena história sobre a minha relação com a Maçonaria, tentando elucidar as mentes mais distraídas:

Andava eu pelos meus 23/24 anos, quando, após uma noite muito bem regada (com comparsas onde se inclui o outro escriba deste blog) e recheada de peripécias, cheguei a casa a horas que o Venerável considerou indignas. Ah, as eternas questiúnculas geracionais!

Visto que a minha capacidade de argumentação estava bastante toldada, não o consegui convencer a abdicar da ideia de me instruir uma acção pedagógica - vulgo castigo – que consistiu em fazer de mim o servente do pedreiro (que, como se sabe, se diz Maçon em francês) que andava a construir um anexo lá em casa. Tentei – juro que tentei! – demovê-lo, mas a reincidência na hora de chegada (aliada, vá, a algum laxismo na hora de pegar nos livros, com as devidas consequências nas respectivas épocas de exame) precipitou a minha entrada nesse mundo obscuro. “Bem-vindo ao mundo da Maçonaria” poderia ter sido o lema desse final de noite/início de manhã, ao contrário do rude e vil “Pega nos baldes de massa antes que a gente tenha que se chatear a sério” com que se fui prendado no meu ritual de iniciação. 

Ora, se à minha vontade inicial (que era nula) se juntar a necessidade da ingestão frequente de líquidos, aquelas primeiras horas de Maçonaria foram um completo tormento. Vi e ouvi coisas muito chocantes. Senti-me deslocado. Vivi momentos absoutamente traumáticos, enquanto acartava baldes de massa à razão de 4 a 6 baldes por minuto e ouvia o “Tó”, o Grão-Mestre da Maçonaria Pegacha a dizer para ser mais rápido e que já tinha visto “gajas com mais bigode que tu a queixarem-se menos”. Pudera, pensava eu: a capacidade de sofrimento de um ser humano é directamente proporcional à sua capilosidade infra-nasal… Isso é uma verdade universal que o povo português tem vindo a demonstrar nos últimos 9 séculos e pela qual deixei crescer uma barba que já não vê Gilette vai para 4 anos!

Aqui se compreende o sofrimento do aprendiz de Maçon: enquanto ser Maçon é, por si só, uma posição honrada, onde se pode (deve!) exigir o melhor do seu ajudante, utilizando todo o vernáculo possível e imaginário, o intuito nobre é o de preparar o pobre servente para um mundo duro, lá fora, para que um dia possa ser ele próprio um Grão-Mestre da alvenaria. Por seu lado, o imberbe aprendiz resigna-se a uns secos “tá bem” e “não me moas o juízo”… Registe-se a filantropia de tudo isto: o real reforço do carácter através da busca pela perfeição – haja cerveja e asneirada, claro… 

E enquanto balde vai e balde vem - no meio de dialectos estranhos, com palavras e expressões como "batenêra", "ai mãããã" e "tu és mazé malhuque" - recomeçam a entrar os líquidos mais frescos na garganta e toda a bruma desvanece e a razão pela qual tudo aconteceu começa a sobressair: construir um abrigo – há quem lhe chame poiso – onde poderemos albergar os nossos e, no final, receber (ou poupar) uns cobres por isso.

E, ao cair da noite, a verticalidade da Organização dilui-se e invade-se um espírito de fraternidade e igualdade indescritíveis: o chouriço assado e o pão são divididos irmãmente e o vinho “é para acabar, que na fica aí a fazer nada”.

Só não percebi a parte de usar avental e colares: o meu Grão-Mestre usava uma pá de pedreiro e um palito ao canto da boca, que lhe impunham grande respeito e lhe davam um ar bem menos apaneleirado!